Sr. Presidente do Pen Clube do Brasil, professor Ricardo Cravo Albim,
Caros amigos, caros colegas do Itamaraty,

Quero antes de mais nada agradecer ao nosso Presidente, Ricardo Cravo Albim, por esta cerimônia. Como sou Embaixador do Brasil na Malásia, eu não pudera ainda tomar posse como membro do Pen Clube do Brasil. Nosso Presidente acolheu favoravelmente que a cerimônia se desse esta semana, a única que passarei no Rio de Janeiro nestes poucos dias de férias no Brasil.

Quero também agradecer ao editor Carlos Leal, meu amigo, pelas palavras generosas com que me saudou.

Há muitos amigos e primos presentes aqui hoje. Quero registrar, em especial, a presença de minha mãe, Embaixadora Thereza Quintella. Minha mulher, Eugênia Barthelmess, por ser Embaixadora do Brasil em Singapura, não pôde estar presente. Por intermédio da minha mãe e da minha mulher, quero homenagear todas as mulheres profissionais do Brasil, e não somente as diplomatas, que enfrentam toda série de dificuldades para o bom êxito de suas carreiras.

Quero, desde já, prestar homenagem a uma personalidade ímpar, meu pai, Ary Quintella, que pertenceu ele também a esta instituição. Em setembro, serão 25 anos desde seu falecimento.

Não é à toa que começo este discurso mencionando meu pai e minha mãe. Eles foram, sem dúvida, e como seria natural, as maiores influências na minha formação. Minha formação emocional, psicológica e também intelectual.

Criança e adolescente, minha maior alegria, meus melhores momentos eram passados lendo os volumes que eu retirava da biblioteca familiar. Havia, naturalmente, os livros infantis e juvenis que meus pais ofereciam a mim e aos meus irmãos. Este ano, em abril, vimos partir o Ziraldo. Guardo com carinho a primeira edição de Flicts, que ganhei aos seis anos de idade. Ou melhor, Eugênia o guarda com carinho, pois o livro está em Singapura. Essa separação involuntária da biblioteca conjugal é, desde 2020, um dos elementos da nossa realidade de casal de diplomatas.

Havia portanto os livros oferecidos pelos pais, mas havia os livros pertencentes aos pais, em suas estantes no Rio, em Bruxelas, em Montevidéu, em Brasília, em Londres. Há algo de mágico no fato de uma biblioteca viajar. Ao nos acompanhar, ela torna nossa vida nômade mais estável, mais aceitável. A casa da gente é onde nossos livros estão. Filho de diplomata, desde sempre tive de aceitar que tudo seria impermanente: os amigos, a escola, o idioma, a cultura e os hábitos locais.

Mas a biblioteca dos meus pais era um dado permanente, era algo sólido, em que eu podia confiar. Era um refúgio. Um refúgio contra as impermanências da vida, as incertezas que eu percebia ao meu redor, inclusive as incertezas quanto à durabilidade do casamento dos meus pais.

Em dezembro de 2023, na qualidade de Embaixador na Malásia, participei do Festival Literário de George Town, na ilha de Penang, na costa ocidental da Malásia. É um celebrado evento anual. A edição de 2023 contou com a presença de famosos autores europeus, entre 3 outros Geoff Dyer e Édouard Louis. E também, e sobretudo, com a presença de Clarice Lispector. Graças a recursos fornecidos pelo Instituto Guimarães Rosa, que é o departamento cultural do Itamaraty, a Embaixada em Kuala Lumpur montou, para o Festival de George Town, uma exposição sobre a vida e a obra de Clarice. O material nos foi cedido gratuitamente pelo Instituto Moreira Salles, e a exposição em Penang era uma versão reduzida da mostra realizada pelo Instituto Moreira Salles, “Constelação Clarice”, em São Paulo e no Rio, entre 2021 e 2022. Em Penang, o espaço era apenas um ambiente, transformado pelo curador malásio como se fosse uma sala no apartamento de Clarice. Era um espaço intimista. Visitantes me disseram que, ao tomar conhecimento pela primeira vez da existência de Clarice naquela exposição, haviam se sentido estimulados a ler sua obra. Seus livros, aliás, em traduções para o inglês, estavam à venda na livraria oficial do Festival, e saíram rapidamente.

Ao abrir a exposição, eu disse algumas palavras sobre Clarice Lispector e citei uma carta sua muito famosa a Olga Borelli, que muitos dos aqui presentes já conhecem. É a primeira carta; Clarice e Olga Borelli acabavam de se conhecer, por isso o tom pessoal e franco usado por Clarice causa ainda mais impacto. A carta diz: “Sou uma pessoa sem rumo na vida, sem leme para me guiar: na verdade não sei o que fazer comigo. Não tenho qualidades, só tenho fragilidades. Mas às vezes, tenho esperança”.

Eu gosto muito dessa carta. Frequentemente penso nela. A meu ver, ela sintetiza a razão pela qual lemos e escrevemos. Lemos e escrevemos para ter um rumo na vida, um leme que nos guie. Lemos e escrevemos para descobrir o que queremos fazer de nós mesmos.

Ler e escrever são duas facetas da mesma atividade, a busca de si mesmo. Ajuda no processo que um bonito poema de Jorge Luis Borges, “Tríada”, define como “la triste costumbre de ser alguien”. E eu vejo que essa é a grande aventura de todo ser humano, descobrir como somos, como ser alguém. E é isso que ler e escrever nos permitem fazer.

O Rio de Janeiro é um lugar privilegiado. Não só por causa da sua inigualável beleza natural, mas por ser um celeiro da escrita. Terra natal ou de moradia de escritores. Podemos acompanhar sua evolução ao longo do tempo por meio da literatura, a que serve de fonte de inspiração. O Rio iguala-se então a outras cidades literárias, como Paris, Londres, São Petersburgo. Quando, em posto no exterior, leio a descrição que Machado de Assis faz, em Quincas Borba, da praia de Botafogo ao luar, o coração se aquece. Escreve Machado: “A lua estava então brilhante; a enseada, vista pelas janelas, apresentava aquele aspecto sedutor que nenhum carioca pode crer que exista em outra parte do mundo”.

Estrangeiros citam o Rio em suas obras. Há três anos, escrevi um ensaio intitulado “Joseph Brodsky no Corcovado”. Pois Brodsky aqui esteve, em 1979, justamente para participar de um congresso do Pen Clube Internacional, então presidido por Mario Vargas Llosa. O texto de Brodsky é ambíguo e até preconceituoso; ele não entendeu o Rio de Janeiro. Achou mesmo haver aqui um rio chamado Janeiro. Mas mesmo ele ficou boquiaberto com a nossa paisagem. Vendo a cidade do alto do Corcovado, estima que: “Em um dia claro, você sente que tudo o que seu olhar já viu antes são apenas as sobras miseráveis e sem brio de uma imaginação interrompida”. O Rio, assim, embora visto com ressalvas por Brodsky, e sem muita compreensão, e, como eu disse, com preconceito, causou um impacto pela sua beleza. É uma das três cidades sobre as quais se detém em sua obra, junto com sua cidade natal, São Petersburgo, e sua cidade preferida, Veneza.

Mas o Rio não é apenas um celeiro de escritores. É também o depositário de instituições literárias. Temos aqui na cidade o Pen Clube do Brasil, e também a Academia Brasileira de Letras e a Biblioteca Nacional. Visitei esta semana o presidente da Biblioteca Nacional, Marco Lucchesi, que é aliás membro do Pen Clube do Brasil, para fazer doação à Biblioteca de um exemplar do livro que a Embaixada do Brasil na Malásia publicou, em janeiro, sobre a obra realizada por um gênio 5 brasileiro, Roberto Burle Marx, em Kuala Lumpur. A capital Malásia tem a distinção de ser a única cidade asiática a conter um parque projetado por Burle Marx.

A Biblioteca Nacional impressiona. Na juventude, passei muitas horas em seu salão de leitura. O prédio está em perfeito estado de conservação, é um tesouro nacional, depositário de muitos outros tesouros.

Há outra instituição literária no Rio, além das que já citei. Existe, na Casa de Ruy Barbosa, o Arquivo Museu de Literatura Brasileira. Vou ao AMLB com frequência, quando estou no Rio, e já escrevi mais de uma vez sobre essa instituição. O arquivo do meu pai está lá. É algo estranho para mim que as cartas bastante francas, transparentes que escrevi ao meu pai não estejam comigo, mas sim no AMLB. Ele assim quis. Hoje mesmo, de manhã, fui à rua São Clemente, para visitar a nova diretora do AMBL, Maria de Andrade. Rever no AMBL a poltrona de Manuel Bandeira, os óculos de Carlos Drummond de Andrade é também uma forma de pensar na tradição literária do Rio de Janeiro e, por extensão, do Brasil. Uma vez, há alguns anos, foi-me lá mostrado o manuscrito de Menino de engenho, de José Lins do Rego. Esse livro, cuja ação se passa no Nordeste, marcou minha adolescência de menino meio carioca e meio mineiro. Esse é o poder da literatura. José Lins do Rego, paraibano, escreve um romance sobre um menino nordestino, com o qual um adolescente no Sul do país pode se identificar. Ver o manuscrito no AMLB foi por isso uma experiência cativante para mim.

Ao agradecer uma vez mais esta cerimônia, senhor Presidente, quero cumprimentá-lo pela iniciativa de organizar também esta semana um evento comemorativo de Guimarães Rosa. É por meio de iniciativas como essa que o Pen Clube do Brasil se equipara às outras instituições literárias. Contribui a fazer do Rio de Janeiro, terra lúdica, também um palco literário.

Muito obrigado.